Margens

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A actual corrida presidencial norte-americana é muito mais do que uma opção entre dois estilos de liderança, ou entre políticas de esquerda ou de direita.

Parece, aliás, longínquo o tempo em que a escolha era entre diferentes perspectivas sobre o papel do estado federal, a autonomia dos mercados ou o nível dos impostos. Na verdade estamos, e meço bem as palavras, numa contenda cultural e moral. Os dois lados traçam barreiras cada vez mais profundas. E os que se atrevem a mediar e a construir pontes não resistem à voragem do seu lado da barricada: têm de se arrepender rapidamente, ou simplesmente sair do “ringue”.

Ainda que saiba que a influência dos EUA não tem hoje a hegemonia de outrora, parece-me que existe uma clara contaminação neste lado do Atlântico. É que perante o sucesso crescente do Partido Republicano os oportunistas europeus, tendo como meta o poder, mimetizam o trajecto. Usam os mesmos meios: redes sociais, cartazes publicitários e programas de rádio e televisão. A mensagem também é semelhante: acentuam ressentimentos, adensam a desinformação. Já aqui escrevi sobre a mensagem populista e racista perante os imigrantes e as minorias, mas hoje quero focar-me no tom moralista. É que a história ensina que quando os proto-autocráticos tomam de assalto o executivo querem decidir e controlar tudo. 

Não se limitam às escolhas pombalinas das grandes obras e cedo cedem à tentação de controlar também a “moral e os bons costumes” da nação.

A liberdade individual esfuma-se nesse instante. À semelhança de muitas ditaduras o cidadão modelo (que é sempre apresentado como masculino) surge virtuoso com as suas normas, casa e família estandardizadas. O desprezo por quem não pertence à tribo é então aceite em pleno. Mas o que eles não sabem é que todos perdem nesta sociedade cinzenta. O que eles não percebem é que o que nos define é bem mais do que o nosso berço ou as nossas acções. Mais uma vez é a sétima arte a janela aberta para este mundo invisível. Nesse sentido, recomendo o belíssimo filme “Broker” de Hirokazu Kore-eda. O cineasta japonês começa por descrever o obscuro negócio de dois amigos (um deles é representado pelo conhecido Song Kang-ho de “Parasitas”). Esta dupla rouba para o mercado negro da adopção os bebés que são deixados na igreja por pais que não podem cuidar deles. Outras personagens cedo se juntam e o filme arranca ao estilo de “road movie”, que nos remete para outros clássicos, mas que aqui percorre a Coreia do Sul.

Tal como no premiado “Shoplifters: Uma Família de Pequenos Ladrões”, Hirokasu com a sua sensibilidade e sólida direção de actores, demonstra que os que vivem à margem são, como eu e o leitor, repletos de contradições, de luzes e sombras, de certezas e arrependimentos. São estes desvios em cada percurso que nos colam ao chão, mas que também tecem os fios que nos arrancam da lama e se entrelaçam na nossa humanidade partilhada.

Nota:Crónica publicada no “Diário de Aveiro” a 24 janeiro 2024

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